terça-feira, março 24, 2009

Novo Ano, Experiência adaptada

Por vezes é menos fácil estar na Terra. Quando criei este blog tinha a pretensão de relatar a experiência, talvez num tom de confessionário, talvez num tom descritivo qual cientista no terreno. O certo é que são poucas as minhas palavras e mais as colagens com as quais identifico o estado da minha alma.
Estado de alma também não era o objectivo deste diário online, era a experiência que me atraia, tal como um alien do seu ovni estaria observar a bela da crosta terrestre, os seus seres, os seus meios, os seus elementos… mas confesso que saltei a fase da carapaça de ET, e transvisto-me de humano, esqueço em consciência de observar outras espécies, outros ecossistemas e fico neste… assumo que é uma tarefa hercúlea pois este é subdivide-se em outros tantos quanto seu exponencial (espero que tinha parecido cientifico, credível e até interessante a utilização desta expressão completamente vazia).
Estar na TERRA é interessante, mas complexo de se estar. Sentir, pensar, ouvir também são momentos, etapas, componentes e compostos de definição complexa e, como na complexidade reside a simplicidade, vou-me esquecer conscientemente do método e vou observar, sentir e viver como humano. Em todo o caso esta experiência à qual me vou sujeitar por uma parcela de tempo indeterminada, conta com um desafio. Um desafio que introduz na formula substituir o porquê pela útil questão para quê, tal como olha a energia do medo de frente e desafiar-me a usar a energia criativa do amor.
Feito que está o papel humano que vou desempenhar, resta o guião e para tal conto com a realidade em que estou inserida, conto com o contexto de um planeta global visto na TV e conto com a sincronicidade do universo em permear-me com momentos de Estar na Terra.

segunda-feira, março 16, 2009

Bernardo Soares (Fernando Pessoa) - 166


166
166 L. do D.


28-9-1932



Há muito – não sei se há dias, se há meses – não registro
impressão nenhuma; não penso, portanto não existo. Estou
esquecido de quem sou; não sei escrever por que não sei ser. Por
um adormecimento oblíquo, tenho sido outro. Saber
que não lembro é despertar.

Desmaiei um bocado da minha vida. Volto a mim sem memória do
que tenho sido, e a do que fui sofre de ter sido interrompida. Há em
mim uma noção confusa de um intervalo incógnito, um esforço fútil
de parte da memória para querer encontrar a outra. Não consigo
reatar-me. Se tenho vivido, esqueci-me de o saber.

Não é que seja este primeiro dia do outono sensível – o primeiro de
frio não fresco que veste o estio morto de menos luz – que me dê,
numa transparência alheada, uma sensação de desígnio morto ou de
vontade falsa. Não é que haja, neste interlúdio de coisas perdidas,
um vestígio incerto de memória inútil. É, mais dolorosamente que
isso, um tédio de estar lembrando o que se não recorda, um
desalento do que a consciência perdeu entre algas ou juncos, à
beira não sei de quê.

Conheço que o dia, límpido e imóvel, tem um céu positivo e azul
menos claro que o azul profundo. Conheço que o sol, vagamente
menos de ouro que era, doura de reflexos húmidos os muros e as
janelas. Conheço que, não havendo vento, ou brisa que o lembre e
negue, dorme todavia uma frescura desperta pela cidade indefinida.
Conheço tudo isso, sem pensar nem querer, e não tenho sono
senão por lembrança, nem saudade senão por desassossego.

Convalesço, estéril e longínquo, da doença que não tive.
Predisponho-me, ágil de despertar, ao que não ouso. Que sono me
não deixou dormir? Que afago me não quis falar? Que bom ser
outro com este hausto frio de primavera forte! Que bom poder ao
menos pensá-lo, melhor que a vida, enquanto ao longe na imagem
relembrada, os juncos, sem vento que se sinta, se inclinam glaucos
da ribeira!

Quantas vezes, relembrando quem não fui, me medito jovem e
esqueço! E eram outras que foram as paisagens que não vi nunca;
eram novas sem terem sido as paisagens que deveras vi. Que me
importa? Findei a acasos e interstícios, e, enquanto o fresco do dia é
o do sol mesmo, dormem frios, no poente que vejo sem ter, os
juncos escuros da ribeira.